O Lixo

14/06/2011 § Deixe um comentário

Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de  lixo. É a primeira vez que se falam.

 Bom dia…

– Bom dia.

 – A senhora é do 610.

 – E o senhor do 612

 – É.

Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente…

– Pois é…

Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo…

 – O meu quê?

– O seu lixo.

– Ah…

– Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena…

– Na verdade sou só eu.

Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.

 – É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar…

Entendo.

 – A senhora também

Me chame de você.

– Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim…

É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra…

– A senhora… Você não tem família?

Tenho, mas não aqui.

– No Espírito Santo.

Como é que você sabe?

– Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.

É. Mamãe escreve todas as semanas.

– Ela é professora?

Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?

– Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.

O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.

– Pois é…

No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.

– É.

Más notícias?

– Meu pai. Morreu.

Sinto muito.

– Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.

Foi por isso que você recomeçou a fumar?

– Como é que você sabe?

De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.

– É verdade. Mas consegui parar outra vez.

Eu, graças a Deus, nunca fumei.

– Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo…

Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.

– Você brigou com o namorado, certo?

Isso você também descobriu no lixo?

– Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.

É, chorei bastante, mas já passou.

– Mas hoje ainda tem uns lencinhos…

É que eu estou com um pouco de coriza.

– Ah.

Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.

– É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.

Namorada?

– Não.

Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.

– Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.

Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.

– Você já está analisando o meu lixo!

Não posso negar que o seu lixo me interessou.

– Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.

Não! Você viu meus poemas?

– Vi e gostei muito.

Mas são muito ruins!

– Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.

Se eu soubesse que você ia ler…

– Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?

Acho que não. Lixo é domínio público.

– Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?

Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que…

– Ontem, no seu lixo…

O quê?

– Me enganei, ou eram cascas de camarão?

Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.

– Eu adoro camarão.

Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode…

– Jantar juntos?

– É.

– Não quero dar trabalho.

Trabalho nenhum.

– Vai sujar a sua cozinha?

Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.

– No seu lixo ou no meu?

(O LIXO, texto de Luis Fernando Veríssimo)

O texto de Luis Fernando Veríssimo mostra como é possível conhecer os traços de uma pessoa ou uma sociedade analisando aquilo que ela consome. A famosa frase já diz: “você é o que você come”. No caso do texto o autor quis dizer: “Tudo o que você é está no lixo que você produz”.

Fato semelhante acontece em Buriticupu. O forasteiro que aqui chega não precisa perguntar para o buriticupuense como trabalha o prefeito deste município. Mesmo nunca o tendo visto, pode perfeitamente tirar muitas conclusões a respeito dele apenas analisando o lixo da cidade. Não dá para uma pessoa que nunca havia estado antes em Buriticupu dizer que o prefeito municipal é uma pessoa honesta, trabalhadora, preocupada com as necessidades da população, se a primeira visão que tem da cidade é de pilhas e mais pilhas de lixos espalhadas por toda as esquinas. O lixo de Buriticupu mostra para as pessoas de fora o prefeito que nós temos.

Vale dizer que a simples coleta do lixo nas ruas não é um fim em si mesmo. Não adianta apanhar o lixo e o descartar inadequadamente em qualquer lugar. Faz-se necessário um despejo correto dos resíduos sólidos da cidade. O que vem gerando revolta na população é o fato de que além de incentivar a prática dos lixões, o senhor prefeito ainda faz questão de fazê-los dentro da cidade, como é o caso do que foi feito ao final da rua da Independência e o que está acontecendo agora, onde o lixo recolhido é simplesmente jogado em um terreno que o município, a princípio, teria doado a uma associação comercial da cidade, próximos a residências e estabelecimentos comerciais.

No texto acima, o final é feliz para os protagonistas. Foi devido ao lixo que o casal se aproximou e terminou estreitando sua relação. Será que o mesmo acontecerá em Buriticupu? Será que, a partir do lixo espalhado na cidade a população passará a agir, ao invés de fazer vista grossa para tanto descaso? Esperamos que sim.

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O que é isso?

Você está lendo no momento O Lixo no Buriticupu.

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